terça-feira, 27 de agosto de 2024

Fujaco, Aldeia de Xisto

thymus praecox no Fujaco



O topónimo Fujaco

A inexistência na idade média, de terrenos para cultivo nos locais já ocupados e de bom maneio agrícola. A situação de pobreza, sem campos, obrigou criaturas fugirem para locais de terra de ninguém (baldios). Aqui seria possível sobreviver, numa época, onde a base da existência era a agricultura e pastorícia. Aí, os rebanhos teriam alimento nas encostas da imensa serra, sem que algum proprietário os ameaçasse em alguma guerrilha ou disputa, pela posse de terras, sobretudo nos vales produtivos. Foram empurrados para lugares que outros não queriam, ou por disporem de terrenos, ou ainda pelas imensas dificuldades de criar solos aráveis. Estes locais nascem da angústia pela sobrevivência. O esforço de transformar o local do Fujaco em solos aráveis foi titânico, surpreende ainda hoje ver os socalcos de pequeniníssima dimensão onde o milho era cultivado, base da alimentação para pessoas e animais. Socalcos a sul da escola, até ao Loureiro. Em todas as direções e encostas, permanecem socalcos a fazer lembrar um mini Tibete, hoje ao abandono. Mais surpreendente ainda foi a construção de sistema de irrigação, na utilização da água dos rios e nascentes, que percorriam quilómetros por levadas com troços em precipícios, abertas na rocha. Em algumas levadas, corria a água ininterruptamente, para ser utilizada no consumo doméstico. Foi sem dúvida a presença de nascentes e ribeiras, a falta de terras para cultivo nos vales mais baixos, a falta de espaços para pastagem, e a matéria combustível para cozinhar e aquecer, que determinou a fixação de pessoas. A etimologia Fujaco, sugere um local para onde ‘fujam’. A grafia e a fonética pouco alteraram desde a idade média. A angústia dos que nada tinham. Na expressão Fuja com o António’, no léxico popular seria: ‘Fuja co toino’. A figura Toino (António), um dos angustiados, serviu de exemplo no mesmo destino de outros. E eis que o topónimo Fujaco = (Fuja+co) um local para onde “fujam”.

Habitações

Na idade média, as casas eram muito pequenas, esburacadas, muitas sem divisões, sendo o lugar de cozinhar em chafurdo, servindo o degrau como banco, para cozinhar, comer, aquecer, estar em família. Muito modestas. Não havia chaminé. O fumo conservava os troncos da cobertura e afastava as osgas e demais bicharada. Ainda hoje existem exemplares dessas habitações. O xisto foi arrancado no próprio lugar onde iria nascer a habitação, e de menor aptidão agrícola, quase sempre encostadas umas nas outras. Com o passar dos anos, foram aglomerando e com maior volumetria. Nalguns pontos da serra, sinalizados, havia os louseiros, onde as lousas de cobertura eram extraídas. Locais ainda conhecidos dos atuais habitantes mas que não ousam ir para nos informar. A insegurança, a idade, o mau estado dos acessos, são os argumentos referidos.

Atividades e cultura   

O rebanho comunitário de milhar e meio de cabeças de gado, as desfolhadas durante a noite, a feitura de azeite no lagar junto ao ribeiro, que ainda preserva o alvará de funcionamento, o moer do milho nos moinhos hidráulicos, o coser da broa, a produção de mel. Era necessário sobreviver, alimentando seus habitantes.

Foto cedida por Isabel Martins

A aldeia do Fujaco manteve uma coexistência curiosa de entreajuda coletiva, desde a construção das casas, dos socalcos, da pastorícia, dos sistemas de irrigação e nos trabalhos agrícolas. Também se trabalhava na cestaria, lembrando o seu maior cesteiro, Tio Delmiro. No fabrico e arranjo de tamancos como o Tio Domingos e na tecelagem como a Sra Maria ?. Uma aldeia autossuficiente no passado, até meados do século XX.  

A tia Belandina, era a popular rezadeira do Fujaco. A reza das doze ‘palavras’ ditas e retornadas, e a intensão:


Pela Santa Casa de Jerusalém

Por onde Jesus morreu, ámen.

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

 

Pelas duas tábuas de Moisés

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

 

Pelas três pessoas da Santíssima Trindade

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

 

Pelos primeiros quatro evangelistas

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

 

Pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

Pelos seis primeiros evangelistas

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

 

Pelos sete sacramentos

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

 

Pelos oito cordientes ??

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

 

Pelos nove meses que Jesus andou dentro do ventre de sua mãe

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

 

Pelos dez mandamentos

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

 

Pelas onze mil virgens

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

 

Pelos doze apóstolos

Custódio amigo meu,

Custódio amigo teu não

 

Já que dissemos as doze, vamos dizer as treze

Treze raios leva ao sol, treze raios leva a lua, arrebenta diabo maldito, que esta alma não é tua.

(obrigado a tia Quitas por conseguir recordar esta súplica)

O desenvolvimento dos caminhos-de-ferro em Portugal, no século XIX, deu ao Fujaco um crescimento distinto. A procura de carvão vegetal para uso nas cozinhas e nos comboios a vapor, ditou a fixação de mais pessoas, na procura da matoeira e torga, e feitura do carvão e seu envio a ombros e/ou com animais até Sul e daí para seus destinos.

Poucas décadas depois, surgem as grandes guerras. Ao Fujaco chegam outros habitantes, desta vez para o minério, nas minas do Loureiro, Goirim, Regoufe e um pouco por toda a serra. Este trabalho deixou marcas, o Manuel da Sara que um dia ficou debaixo de uma rocha mas que escapou com vida, pela ajuda dos colegas, depois de ficar horas sob rochas.

Graças ao minério, quer no Fujaco quer aldeias envolventes, a demografia foi exponencial.

Perante tal cenário, e findada a guerra em 1945, foi construída no ano de 1950 a escola primária. No primeiro ano de funcionamento era frequentada por 46 alunos. Nessa época não existia estrada de acesso ao Fujaco, apenas acesso pedonal. Ao Fujaco chegavam também alunos apeados das aldeias ao redor (Bodial, Massagoso, Loureiro, Valverde, entre outros lugares).

Os materiais utilizados na construção da escola, telhas, cimento, salão (espécie de barro usado na época) portas e janelas, e outros, foram transportados aos ombros e na cabeça desde a Aldeia de Sul. Por cada carga, recebiam meio escudo (50 centavos). Recordo que na transição para o euro, cinquenta anos depois, em 2002, eram necessários mais de 200 escudos na conversão de um euro.  

Um episódio escolar, relatado por Manuel Duarte:

A professora, (regente) vinha a pé da aldeia de Sul, onde morava. Certo dia, o Manel, por uma desavença, foi castigado pela regente, com a régua. No entanto, no compasso, retira a mão, e eis que a régua vai com alguma intensidade, ao joelho da regente. Manel não perdeu tempo, fugiu, abandonando definitivamente a escola, a poucos dias de completar a quarta classe.

Actuais habitantes ainda se lembram da roda-viva da aldeia, dos bailaricos, dos contos, dos encontros amorosos na noite escura, na subida pelas janelas na socapa, para meu amor ver e que nem sempre corria da melhor feição, ou porque alguém desvendou, ou porque tombavam da escada.

Cantigas da perecida Palmira Pagalhão sobre a lenda da Silvana, uma de sete irmãs, a jovem mulher de uma lindeza imensa, por quem seu pai viúvo e perturbado se apaixonou, e que morreu desgostoso:

 

Mandei fazer um convento

Dos mais altos que havia

P´ra meter Silvana dentro

Lá, rá, lá, rá

Sete anos e um dia

 

A Silvana foi ‘par’ dentro

Muito triste, apaixonada

E encontrou suas manas

Lá, rá, lá, rá

A bordar na almofada

 

Deus de saúde a minhas manas

A mais á Virgem Sagrada

Por amor de Deus le peço

Lá, rá, lá, rá

Me de um jarro ‘d’auga’

 

 

Dava-te ‘auga’ ó Silvana

Mas o pai deixou escrito

Lá, rá, lá, rá

Na ponta da nossa espada

E a primeira que desse ‘auga’

Lá, rá, lá, rá

Tinha a vida tirada

 

 

A Silvana foi ‘par’ dentro

Muito triste apaixonada

E encontrou sua mãe

Lá, rá, lá, rá

A ‘barreri’ uma escada

 

Deus dé saúde a minha mãe

A mais Virgem Sagrada

Por amor de Deus ‘le’ peço

Lá, rá, lá, rá

Que me dé um jarro ‘d’auga’

 

 

Dava-te ‘auga’ ó Silvana

Ó Silvana mal fadada

Mais por ver de ti Silvana

Lá, rá, lá, rá

Vivo eu mal casada

 

 

A Silvana foi ‘par’ dentro

Muito triste, apaixonada

Encontrou seu paizinho

Lá, rá, lá, rá

Encostadinho á escada

 

Deus dé saúde a ‘mé’ paizinho

A mais á virgem sagrada

Por amor de Deus ‘le’ peço

Lá, rá, lá, rá

Que me ‘dé’ um jarro ‘d’áuga’

 

Pegue lá minha mão direita

E a esquerda ‘s’a’ quiser

Que eu sou sua filha

Lá, rá, lá, rá

E não sou sua mulher

 

Venham os jarros d’ouro

Que os de prata já cá estão

P’ra dar ‘auga’ á silvaninha

Lá, rá, lá, rá

Que ela já deu a mão

 

Silvaninha não quer ‘auga’

Que está no céu a ‘buber’

Ai a alma de meu pai

Lá, rá, lá, rá

No inferno vai morrer

 

 

Muitas estrofes foram perdidas, não havendo quaisquer registos, denotando-se alguma desordem, na estância acima.

 

Nas fontes cimeiras brotava água férrea, no passado, muita usada pelos habitantes para curar maleitas.

Léxico que perdurou até aos anos cinquenta, ou até mais tarde, muito usual no Fujaco:

Barulhice = discussão

Mourear = trabalhar sem descanso

Auga ferra = Água curativa da nascente cimeira

Corriqueira = bisbilhoteira

Empesperrado = perplexo

Engemino = teste sobre a preparação para a primeira comunhão

Fragas = maciços rochosos

Cabresto = conserto ou remendo em tamanco

Fonte cansada = fonte que secou

 

Acessos

Só no ano de 1999 ou ano 2000, o Fujaco teve acesso para viaturas em forma de estradão.

A electricidade no Fujaco é muito recente e poucos anos antes do estradão de acesso.

A chegada da eletricidade ao Fujaco, o primeiro dia (foto cedida por Isabel Martins)

A atual Capela de Nossa Senhora dos Remédios foi inaugurada no ano de 1980. A anterior capela localizava-se no meio do casario. Supõe-se que a imagem da padroeira foi oferecida por um benemérito de Nelas, quando o Fujaco ainda não tinha capela, tendo sido colocada na igreja da freguesia de Sul, aguardando a construção da primeira capela do Fujaco, para onde foi em procissão.


Na procura de melhores condições de vida, ocorre o êxodo das populações para diferentes destinos.

O descuido das entidades em investimentos estruturantes, marcou isolamento dum lugar com potencial turístico, ambiental, económico, paisagístico, arquitectónico, desportivo e até histórico, e está a agonizar a aldeia. 

Abate ver os moinhos, o lagar de azeite, os canastros, as casas, em ruínas, a arquitetura adulterada, onde o xisto deveria prevalecer, até a capela e a escola ignoraram o xisto.

Mais triste ainda é constatar a falta do seu melhor património, a população. Em cinco décadas, perdeu mais de 90% das suas gentes, sendo que os residentes contam apenas 14 habitantes no ano de 2 024, e com idades maduras.

Urge refletir o nosso Fujaco. São sobejamente conhecidas as aldeias abandonadas em redor, Loureiro, Massagoso, Valverde, Goirim, Pego, Bodial, Drave, entre outras.

O Fujaco e zona envolvente contribuíram no desígnio coletivo da nação, evidentemente á sua dimensão. Noutras épocas os produtos agrícolas e animais para consumo. O carvão, os minérios e recentemente energia através das eólicas. Tem mais para dar.

Valorizar o latente turístico. Dispõe já de alojamentos locais, num contexto de soberba paisagem, biodiversidade, geomorfologia, arquitetura e recursos dulçaquícolas, entre outros.

Biodiversidade

Eis algumas espécies que vou observando no nosso Fujaco:

Erva das azeitonas (Clinopodium nepeta) pessoalmente uso esta espécie na conserva de azeitona e na feitura de delicioso chá. É ainda utilizada em perfumes e na cosmética.


Erva das azeitonas (foto de 20 Outubro de 2024)

Tortulho (Macrolepiota procera)

Espécie micológica de ótima comestibilidade (foto de 20 Outubro de 2024)
  
Concluo com um bloco de pedidos para interromper a agonia destes locais.

Acessos á internet. Via alargada á aldeia; rede de percursos pedestres homologados. Circuitos desportivos de montanha. Alcatroamento do estradão da antiga escola para a serra, estimulando visitas circulares de viatura, porque nem todos podem caminhar; construção de praia fluvial e zona de lazer envolvente, no local onde já existe estrutura de betão de outrora, de sistema de regadio. Como exemplo, elegia a praia de Cardigos, a Foz do Cobrão, Foz do Égua, Benfeita, Sótão, Carvoeiro, Portagem, Meimoa e outras. Aquelas praias foram erigidas em pequenos ribeiros. No caso de Cardigos e porque podia comprometer o funcionamento durante a estiagem, foi construída uma pequena represa em terra, reserva que vai garantindo o pleno funcionamento da praia. Apesar de sazonais, vários postos de trabalho emergiram, quer exercício do bar restaurante quer como nadadores salvadores, num local deprimido em empregos. Sinalética á entrada do Fujaco, informando que junto da antiga escola há parqueamento, capela e miradouro, potenciando aquele local elevado donde se avistam as montanhas e vales, os meandros da estrada, o casario em presépio. Muitos turistas, reclamam pela falta de informação depois da visita. Incentivar proprietários na recuperação ou venda das casas em ruína. Restauro dos moinhos e dos canastros, símbolos de interesse, e como forma de respeitar os antecessores. Libertar no PDM espaços para construção de novas casas, mais cómodas mas que respeitem a arquitetura local, nomeadamente paredes e coberturas em xisto, no troço do limite urbano, desde a entrada na aldeia, até aos limites da antiga escola.

Assiste-se á proliferação no nosso Fujaco de espécies invasoras como: Háquia picante, eucalipto, acácia, uva dos passarinhos, erva da fortuna, entre outras, e que estão a alterar negativamente a paisagem.

Este trabalho é dinâmico. Sempre que surgir quaisquer informação de importância sobre a aldeia, editar-se-á. Estou de posse de mais dados, no entanto, necessitam de algum trato.

A minha gratidão aos que testemunharam este conhecimento e que futuramente se irá alistar.

 

José Manuel Costa Amaral, 20 de Outubro de 2024